Noutro dia, encontrei um amigo que comentou estar gostando bastante das “histórias engraçadas” que eu estava postando aqui. Meus caros, o blog trata da história – e das histórias – do Colúmbia, e, na verdade, a maioria delas não é engraçada. Acontece que, não sei bem o porquê, até agora eu vim selecionando histórias com um fundo de humor para postar.
Contudo, vou tratar aqui de um tema terrível que afeta boa parte da população do bairro: as enchentes. Como foram muitas ao longo desses anos, vou falar de uma das piores que já vi: a de 04 de janeiro de 1992.
1992 foi um ano que parecia promissor: apesar do Collor ser o presidente, o Ano Novo se passara numa boa, sem maiores sobressaltos, sem aquela violência que, enfim, vinha aumentando nos últimos anos. Ademais, lembro-me bem, na noite de Ano Novo teve uma lua cheia linda, céu estrelado e bastante alegria. Ninguém imaginaria o que estava por vir.
Era sábado, o primeiro fim de semana do ano, de certo modo uma continuação da festa. E foi nesse sábado de muito sol, quente, com praia superlotada que eu, voltando do trabalho, cheguei a casa por volta da 17:30 – nessa época eu morava na Rua Irmã Luiza Matos – e percebi um vento frio, desses que indicam que o tempo virar. Até pensei: “Ai meu saco! Amanhã pleno domingo, eu em casa, e o tempo vira... sacanagem...”.
Bastou escurecer, aí pelas 19:30 (horário de verão, né?) e eu tive a infeliz ideia de ir à rua comprar um refrigerante pro lanche da noite. Foi quando atravessava a Ildefonso Falcão que eu ouvi o primeiro trovão: não era um daqueles trovões que se escutam longe, com um som que lembra uma descarga elétrica; não senhor, esse era um som forte, encorpado, como se alguém tocasse uma nota grave em um contrabaixo, aqueles trovões que não anunciam a tempestade, mas que significam que ela já arrombou a porteira do céu e alguns pedaços do céu começaram a desabar na sua cabeça, tamanha era a grossura dos pingos da tempestade que iniciava.
Entrei no primeiro bar que encontrei ali na “beira do rio”: o do Carlinhos, o mesmo Carlinhos que hoje em dia é dono da antiga padaria do Américo, e me refugiei ali na vã esperança de que fosse apenas um alarme falso. Mas em três minutos minhas esperanças naufragaram, pois a água do rio já invadia a rua Ildefonso Falcão e eu tive de voltar pra casa com aquela “água limpa e perfumada” do Rio Acari banhando minhas pernas.
Meus amigos, a chuva caiu até 01:00, numa intensidade como poucas vezes eu vi na vida, inundando não só toda a beira do rio, com a água cobrindo as traves do gol, na Praça Armando Steele, cujos moradores ficaram todos em suas respectivas lajes ou refugiados nas casas dos vizinhos. Mas, além disso, a água acabou chegando até áreas jamais alcançadas antes – e nem depois: a esquina da Edmundo Júnior com a Desembargador Narcélio de Queiroz, a rua Embaú, na altura da Francisco de Menezes e do viaduto do Parque Gênus já são um bom exemplo, só para que se tenha uma pálida ideia do que foi aquela enchente.
Mas a lista de tragédias não para por aqui. A própria Rodovia Presidente Dutra foi inundada pelo rio, com enormes prejuízos para as fábricas e empresas vizinhas: todo o estoque do depósito da Ponto Frio – na outra margem do rio – foi perdido. A gráfica Micron – que dava emprego a muitos moradores do bairro – teve todo seu maquinário danificado pelos metros cúbicos de lama que a invadiram, além de perder todo o papel estocado; a gráfica jamais se recuperaria das perdas, fechando cerca de um ano depois.
Minha casa foi subitamente transformada em abrigo, com diversos vizinhos passando pelos telhados até alcançarem a varanda. Como minha casa ficava no segundo andar, graças a Deus não perdi nada; e como era alugada, meu senhorio foi o primeiro a se refugiar , mas nem assim o sacana me deu um desconto no aluguel do mês seguinte.
O dia seguinte, 05.01.92, amanheceu preguiçoso, como que se curando da ressaca que foi o temporal que nos assolou a noite toda; apenas então pudemos ver a extensão da tragédia: da minha janela eu podia o verdadeiro mar que, pela outra margem do rio, unira o Parque Colúmbia a Jardim América e a Acari, como se os três bairros agora compartilhassem um lago central. Contudo, logo o calor do verão se fez presente, e o odor perfumado das águas do Rio Acari chegaram até nossas narinas.
Estavam todos exaustos mas acho que fui o primeiro a dar a ordem: “ninguém, mas ninguém, seja hóspede-refugiado ou morador da minha casa, vai tomar banho hoje!” “Como é que é?” disse a minha mãe, ao que respondi: “-Será que temos água potável ou já está contaminada pela água do rio? Além disso, quando é que essa água vai baixar, pra gente poder sair de casa?”
A água só começou a dar sinais de retrocesso por volta das 10:30 da manhã, mas só às 14:00 conseguimos botar o pé naquele lamaçal que as ruas todas tinham virado, quando minha mãe pisou o chão – os cigarros dela haviam acabado, e aí não existe desculpa para ficar em casa–, afundou literalmente até o meio da coxa na lama, mas, como o cigarro é a coisa mais importante na vida de quem fuma, lá foi ela procurando onde comprar seu inseparável amigo, o mesmo que lhe raria, como presente, cinco cirurgias para retirada de tumores cancerígenos. Ao voltar para casa, fui categórico: “-Só pisa aqui dentro depois de lavar essas pernas com álcool!” (Ela sempre fazia isso comigo quando era criança... ah! A vingança é tão doce!, hehehe)
Às 18:00 de domingo veio a notícia: a enchente fizera uma vítima: encontraram, no quarto, o cadáver do Geraldo “do Porco”. Parece que havia passado a tarde tomando umas e outras, e outras, e outras, como era seu costume, chegara em casa e dormiu para curar o porre. No verdadeiro coma alcoólico em que se encontrava, Geraldo não percebeu a enchente, morrendo afogado em sua própria cama.
Outras consequências ainda viriam: três casas na beira do rio foram condenadas e derrubadas pela defesa civil, e seus moradores ficaram morando uns dias na Escola Municipal Andréa Fontes Peixoto. Muitos dos comerciantes locais, assim como os moradores, perderiam tudo; espalhando pelas ruas os móveis destruídos pela água. Levaria pelo menos dois meses para que a lama das ruas secasse e fosse recolhida pela Comlurb, nesse ínterim, muita gente pegou dengue, além de coisas piores.
Essa foi a pior das enchentes vividas pelo Parque Colúmbia, superou a de 1968 e deixou a maioria dos moradores numa condição péssima tanto no quesito econômico quanto no amor-próprio, iniciando um ciclo tenebroso de nossa história: os anos 90, sobre que falarei em outro post.
Não imaginava que as enchentes no Colúmbia fossem tão terríveis e há tanto tempo, mesmo assim nunca fizeram nada para melhorar isso?
ResponderExcluirOlá, "fessor"...
ResponderExcluirEu estava proucurando um blog mais ou menos desse tipo, com histórias bem feitas e bastante descritivas...
Alguém disse que histórias são boas dependendo de quem as conta...
mestres são mestres...
Uau!!! Agora pensarei três vezes ou mais antes de passar por aí em dias de chuva!!!
ResponderExcluirNisso minha favela presta, não enche. Falta luz com qualquer chuvinha, mas não enche!
ResponderExcluirE é assim mesmo, nego adora rir das desgraças... No meu blog antigo eu contava meus traumas de viver aqui e o povo se divertia. Aí parei um pouco, soubrou só alguns posts nesse blog de agora falando sobre ir ao supermercado guerrear ou andar nesses ônibus e kombis da vida...
Affe, na próxima vida só venho se eu for rica! LOL
*Aqui é quase um jornal informativo de bairro, sabe? Funda um! ;)
beijo!
Raquel